quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Velho Rabugento Hope

"Uma porção dobrada!" - gritou o velho rabugento na mesa do fundo com um aceno de mão. Não que ele tenha visto que a servente lhe dava atenção, pouco se importava, o pedido chegaria, disso ele sabia.
Ninguém mais se importava com seu tom egocêntrico e nada moderado no tratamento com as pessoas a sua volta, o timbre da sua voz era rouco, com certeza os anos fumando e bebendo comprometeram suas cordas vocais, o que não combinava com sua aparência, apesar de hoje mal cuidada; cabelos lisos e brancos, barba grande, branca e ouriçada, parecia um papai noel, com olhos azuis cor de céu. As roupas, pareciam de um pescador que há tempos não via terra firme, um macacão pardo em cima de uma camisa de manga comprida xadrez azul, boina e all star...num toque de modernidade.
A pergunta que certamente a garçonete sempre se fazia era: "por que sempre porção dobrada?". O velho não era gordo, tão pouco dava conta de tanta comida, mas o pedido era sempre na mesma quantidade, sempre em dobro, nada menos, também nada a mais.
Na mesa, seu livro de sempre tomava um lugar na ponta esquerda, paralelo à sua vista, Persuasão - Jane Austen, a história do amor não vivido, da família no conflito e agora a vontade de revivê-lo, será que seria tarde? A servente com certeza gostaria de lê-lo, ela fazia o tipo romântica, arquinho segurando o cabelo, num coque baixo para proteger os alimentos. Nada de maquiagem forte, apenas uma corzinha nos lábios e um rosado nas bochechas. 
"Quatro anos! Quatro anos e o mesmo livro, todo santo dia, por quê? Ele nem mesmo o lê!" - Era mais uma das perguntas de Ana, a garçonete se fazia.
Ninguém nunca falara com ele antes, certamente Ana não era a única alheia à rotina curiosa o velho. "Quer saber? Hoje falarei com ele!" Disse a servente ao retirar o pedido do senhor no balcão para lhe entregar na mesa.
"Posso lhe fazer uma pergunta?" 
"Você diz, além dessa que acabou de fazer?" - Respondeu o velho, pegando o açucareiro para o café.
A resposta, apesar de afiada, não causou mais receio do que de início na servente, o velho rabugento enfim, não parecia de fato tão encrenqueiro.
"Se não se importar..." - Respondeu Ana, encolhendo os ombros.
"Vá em frente, pergunte." - Disse o velho, mexendo o café.
"Por que porção dobrada?" - Perguntou Ana, sem rodeios.
"É uma pergunta justa." - Avaliou o velho. - "Eu tinha esperança de não precisar te explicar, quem sabe amanhã você tivesse uma resposta apenas por vista..." - O velho rabugento parou para ponderar por alguns segundos, parecia decepcionado por ter que se explicar. - "em todo caso..."
"Eu seria paciente em esperar mais um dia!" - Interrompeu a servente. 
"O amor é paciente! Nunca se esqueça disso!" - Respondeu o velho, feliz com a resposta da servente.
"Última pergunta, qual o seu nome?" - Perguntou Ana, sem aviso prévio.
"Heitor Olivas Poltigar Esper, ou Hope, se preferir, como um acrônimo." - Respondeu o velho.

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